“O Sargento é um Líder”
Na minha cabeça de jovem sonhador, entrei achando que passaria por apertos e sanhaços absurdos. Que mal dormiria ou comeria, que passaria madrugadas fazendo mil exercícios até que metade dos candidatos desistissem. Achei que sentiria medo e saudade desesperadores logo na primeira noite. E, na minha total ingenuidade, achei que aguentaria tudo com certa tranquilidade, como os protagonistas dos filmes de guerra.
Para meu desapontamento geral, nada disso aconteceu. Dormi a primeira noite inteirinha sem acreditar que aquele era meu primeiro dia de exército. Não fui acordado de madrugada, comia todos os dias e as atividades transcorriam como deveriam ser. Para meu primeiro contato cheio de enormes expectativas, aquilo foi meio… desanimador.
Entretanto, isso não fez grande falta na minha formação. Minha cota de sofrimento e ralação tão esperadas acabei pagando com muitos juros em vários outros momentos depois. O que me incomodou foi algo de outra natureza. Tanto na ESA quanto no Básico, senti falta de mais momentos nos quais nossos Subtenentes e Sargentos dividissem sua valiosa experiência conosco.
Infelizmente, na minha percepção, houveram mais Oficiais fazendo esse papel, o que não me parece ser o ideal. Basta observarmos em palestras, cursos, estágios, atividades de qualquer natureza, em quantas delas vimos Subtenentes e Sargentos dividindo seus conhecimentos, experiências e histórias como protagonistas ou uma peça relevante do processo? Não existem tantos assim ou não os percebemos ou os valorizamos? Ou mais, sendo reconhecidos meritoriamente por isso, mesmo que em tarefas do dia a dia. Apesar disso estar se tornando um pouco mais comum agora (quase dez anos após ter escrito este texto).
No meu Básico, a maioria das conversas sobre o EB, sobre a vida militar, sobre nosso papel na sociedade, sobre nossa importância enquanto militares, enquanto praças, sobre diversos assuntos longe da formação em si, mas tão importantes quanto, não vieram dos Sargentos. Vieram dos Oficiais. Na ESA, posso dizer que foi páreo a páreo. Mas, ainda assim, por estarmos na nossa Escola, na nossa Fábrica de Elos, acredito que não deveria ter sido assim.
Óbvio que isso varia de militar para militar. Nem todos têm a mesma percepção que eu. Não temos todos a mesma visão ou opinião. Óbvio também que há diversos motivos para isso ter acontecido. Sargentos sobrecarregados pela rotina da formação, falta de costume ou mesmo percepção nesse sentido, são inúmeras as razões. Porém, de uma maneira geral, com toda minha modernidade, acredito que a formação do Sargento pode melhorar nesse aspecto.
No pouquíssimo tempo que fiquei na AMAN durante o Manobrão, percebi que o Cadete não tem somente um único instrutor. Ele é uma espécie de tutorado de toda Academia. Ele é observado diuturnamente por Tenentes, Capitães, Majores, Coronéis. Todos desprendem uma atenção ímpar na sua formação técnico-profissional e comportamental do futuro Oficial. O cadete vê neles o futuro, e eles olham para o Cadete e sabem que está nas mãos deles o futuro do próprio Exército.
Como Aluno, com os futuros Sargentos, não foi bem assim. Por vezes, quando olhamos para a figura de um Sargento, o que visualizamos? Sejamos sinceros. O que sentimos? Orgulho? Entusiasmo? Pertencimento? Foi este um dos argumentos para a criação da função de Adjunto de Comando: o Sargento poder olhar para o futuro e ver que também pode ocupar um importante cargo de liderança. Uma importantíssima iniciativa da Força, mas envolta em mais propaganda do que expectativas de resultado.
Porém… Quando olhamos para o passado, percebemos o quanto perdemos de nossas referências. Nossa antiga essência, nossos exemplos de liderança, que em outros momentos eram desprendidas de favores institucionais e mais ligadas a proteção do círculo hierárquico dos praças, se dissolverem em promoções que no fim das contas nos tirou o que tínhamos de mais caro. A figura daquele velho praça aguerrido que orientava, brigava e colocava de volta nos eixos seus Sargentos, os lobinhos, os Cabos e os Soldados, aparentemente desapareceu.
Sejamos exemplos, sejamos Sargentos
Voltando ao nosso singelo portão das armas (parte I deste texto), passando pela alameda que dá acesso ao pátio de formaturas, chegamos ao Pavilhão de Comando da ESA.
Nele consta a ideia de que o sargento é uma importante peça de ligação entre o Comando e a Tropa. Um elo. Me soa como uma espécie de mediador. E eu gosto dessa ideia na mesma medida que guardo ressalvas sobre ela. Primeiro, tenho ressalvas por achar que ela divide a Força em dois: um Comando, composto pelos Oficiais; e a Tropa, os praças (as praças, que sempre soa como algo pejorativo).
Essa crença vem da ideia de que existe uma fissura no Exército. E que ela, além de favorecer um lado, desvaloriza o outro. O objetivo aqui não é criar atritos ou alimentar problemáticas. Entretanto, se pensarmos um pouco no Brasil, na formação de nossa nação e da sociedade brasileira, isso se mostra bem próximo. Somos um povo destituídos de uma ideia de nação.
Segundo, gosto dela porque, como elos, precisamos ser fortes. Afinal, como sabemos, a corrente sempre se rompe no lado mais fraco. Isso nos leva a pensar um bocado… Porque por mais vezes do que gostaríamos de admitir, nós somos o lado mais fraco. Mas, no fim das contas, no cerne de nossa função, nós somos, e precisamos brigar para continuar a ser, necessariamente, a parte mais forte da corrente. Ainda que no dia a dia nos seja incutida a ideia contrária.
Para mim, essa frase sempre me deixou com uma pulga atrás da orelha. Pois, não inspira propriamente a liberdade para exercer liderança, não dá a iniciativa necessária e reprime em certo nível a ação de comando caracterizada pela experiência do contato com a ponta da linha, entre tantas outras características inerentes ao sargento. Coisas as quais somos cobrados da boca para fora, mas tampouco são alimentadas das divisas para dentro.
Se há uma frase da qual me orgulho, admiro e até me emociono é a que há atrás do portão das armas. Talvez a melhor dica do que de fato é ser um sargento. Do que devemos buscar acima de qualquer coisa em temor de valores, atitudes e comportamentos. E se pensarmos um pouco conseguimos ver o quanto inerentemente temos nossos próprios valores.
Talvez nada disso que disse seja muito claro, porventura gere dúvidas e desgostos. É tudo meio incerto e nebuloso mesmo, sem identidade, sem muitas respostas. Talvez se começarmos a pensar em quando entramos na Escola como alunos e seguindo sua alameda em direção aos alojamentos, ainda seja difícil ver. Eu entendo. Durante o ano de instrução abarrotado de atividades é mais difícil ainda, eu entendo também.
Mas, um dia a formação termina. Um dia nós saímos pelo portão que carrega nossa quaderna. Neste dia, em marcha, ombro a ombro com nossos companheiros de turma, na mesma alameda por onde passaram tantos outros sargentos, por um instante, talvez, você consiga perceber o que ela tem a dizer. Talvez aqui hoje você esteja pensando nisso. Que ela cumpre exatamente o que um sargento disse a minha turma certa vez. Que nós, sargentos, precisamos trazer a responsabilidade para si. Que devemos buscar nossa valorização por nós mesmos e nunca esperando que isso venha de fora.
“Sargento: Liderança conquista-se pelo exemplo
Quando passamos pelo nosso portão, simples e modesto, porém admirável, assim como entendo que nós somos na origem, iniciamos nossa carreira. Podemos ser um exemplo não somente para cabos e soldados, mas também para os oficiais. Nós servimos. Não somos afetos a precedências. O sargento só quer ser sargento, exercer sua função plenamente no contexto dos conflitos do século XXI. Com isso, se, como diz a frase, é pelo exemplo que o sargento conquista sua liderança, talvez seja por ele que possamos conquistar o espaço que tanto buscamos. O nosso. Sejamos sargentos, nada mais que isso, ainda que promovidos a oficial. Mas, sem perder nossa essência.