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Enquanto isso nas redes sociais… Parte II

Enquanto isso nas redes sociais… Parte I

SEIS HORAS DA MANHÃ, MAS TANTO FAZ

Liberados às três. Dormi por um momento tão breve que pareceram minutos. De pé com a carcaça lenhada, fui tomar café. Cambaleei até o rancho e no caminho encontrei alguns Soldados. Queriam saber se algo havia mudado. “Se acontecer algo, vão nos dizer. Descansem, quando for a hora saberemos”, respondi alguma coisa do tipo para acalmar os ânimos do pessoal. Talvez até o meu. “Massa, fomos acionados para tomar café da manhã no quartel!”, alguém brincou. Encontrei o pessoal da guarda no rancho também, completamente humilhados pela noite virada sem o descanso previsto.

A manhã tinha chegado, trazendo com ela aquele momento em que decidi terminar o que tinha começado na noite anterior: uma tora de verdade. Mas, bem nessa hora: “Sargento!” Fomos chamados mais uma vez. Desci, e o Aspirante nos aguardava com ar de ‘urgência’. “É o seguinte, vamos sair daqui uma hora. Tirem as faltas e coloquem o pelotão em forma. Tudo pronto aí?” Estávamos prontos desde a madrugada. Porém, ainda não sabíamos nada a respeito daquela missão. A ordem era pegar o material, entrar em forma e sair. Só não sabíamos para onde.

Finalmente. Embarcamos na viatura e partimos em direção a uma cidade próxima. No caminho, vimos uma avenida inteira tomada por lixo, lama e lascas de asfalto do tamanho de carros. Nos acostamentos, veículos jaziam amontoados uns nos outros cobertos por mais lixo, entulhos e restos de vegetação. Nas paredes ao longo dela, uma faixa escurecida acima da altura de um homem de pé marcava onde a água tinha chegado. Era um cenário triste e desolador.

Tivemos muita dificuldade para achar um itinerário em meio àquelas ruas. Graças a um dos Soldados que morava próximo a região, achamos um caminho desenfiado até o local que havia sido designado ao Tenente. O Soldado comentou que ali sempre aconteciam enchentes e deslizamentos naquela época do ano e que as notícias não eram das melhores. Comecei a me preparar mentalmente para o pior. Agora valendo. O que poderia estar nos esperando?

Militares do Exército passam pela cidade de Eldorado (RS) após operação na cidade de Triunfo para levar mantimentos a pessoas desabrigadas, em maio de 2024. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Militares do Exército passam pela cidade de Eldorado (RS) após operação na cidade de Triunfo para levar mantimentos a pessoas desabrigadas, em maio de 2024. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

 

SETE, QUASE OITO DA MANHÃ

Chegamos ao local. Era em uma praça ampla no final da subida de uma rua onde apontava um morro coberto por barracões e casas. Na base do morro, numa rua que saia à esquerda da praça, havia uma escola. No ponto mais alto desse morro, uma parte do terreno havia cedido levando algumas construções; outras casas e postes estavam literalmente pendurados e presos por fios e pedaços soltos de suas frágeis bases de concreto e tijolos sem reboco. A escola abrigava os moradores. Estava lotada, abarrotada de gente que não sabia se voltaria para casa. Não éramos os únicos ali, também havia uma pequena representação de bombeiros, guardas municipais, policiais e a defesa civil.

Quando nossa viatura chegou, absolutamente todos nos olhavam. Alguns com curiosidade, outros com espanto. Eu olhava de volta tentando entender a situação, sem saber exatamente como reagir. Paramos a viatura do lado da escola e o Major foi fazer um primeiro contato. Nossa ordem: aguardar. Cabos e Soldados faziam aquelas perguntas geralmente sem respostas, “sei tanto quanto vocês, se souber de algo podem ficar tranquilos que vou avisar. Descansem, senhores, o dia aqui vai ser longo”.

Fui falar com o Soldado da região para saber mais sobre aquela comunidade. Segundo ele, naquele morro havia um ponto de drogas. Olhei para ele, ele me olhou. Só eu mais quatro de nós estávamos com armamento. Olhei para o alto do morro e ao invés de ver simples casas numa encosta passei a ver becos, lajes e janelas à procura de coberturas e possíveis pontos de observação. Olhei em volta pensando quem seria quem ali. E pensei mais uma vez que caralho de missão era aquela.

Não haviam respostas claras. Era a mesma espera de sempre. Dei mais uma coringada em volta. De fato, não vi nada de mais acontecendo. Todo mundo, policiais, guardas, bombeiros, todos conversavam normalmente. Se desse ruim, daria pra eles também. “Deixa arder essa porra”, pensei comigo, e saí saindo.

FAB recebe doações e realiza o envio para a população do Rio Grande do Sul, maio de 2024.

FAB recebe doações e realiza o envio para a população do Rio Grande do Sul, maio de 2024.

 

DEZ HORAS DA MANHÃ, QUASE DOZE HORAS DE ESPERA

Fiquei perto da viatura. A todo momento pessoas entravam e saíam da escola. Entediado, sem assunto, sem ter o que fazer e sem saco, resolvi dar uma volta lá dentro. Moradores se dividiam em salas e corredores. Eram famílias inteiras com filhos pequenos e parentes. Quando precisavam de algo, subiam o morro para buscar. Naquele momento não pensei, mas quando saí de casa na noite anterior tinha certeza de que tudo estaria exatamente no lugar quando voltasse. Não havia risco de nada desmoronar. Como deveria ser viver nessa incerteza?

Em todo canto da escola o que se via eram grades, em janelas, portas, corredores, telhados, nas escadas, nas salas, em absolutamente tudo que pudesse ser tocado havia ferro, cercas e muros. Lembrei das escolas por onde passei. O que fica internalizado em nós depois de anos num ambiente desses? Apesar disso, a escola parecia uma segunda casa para todos ali. Quantas daquelas mães, pais, tios, até avós, já não tinham passado por lá? E agora todos a dividiam mais uma vez.

Lá dentro encontrei o Soldado da área. Orgulhoso de visitar sua antiga casa, cumprimentava suas ‘tias’, professoras, cantineiras e serventes. E como todas elas serviam! Muito diferente de nós naquele passeio, verdade seja dita. Elas viam nele um vencedor, o homem pronto, que de fato era. Eu me emocionei vendo aquela porra. Lembrei das minhas tias em todas as minhas escolas. Parei de reclamar da missão, do dia, do tempo, da vida, da puta que o pariu, da tora que não tinha executado e da fome que começava a apertar de novo. Com a cabeça no lugar, voltei para a viatura.

Na saída, pude ver o militar do Estado Maior com outras autoridades numa sala. Pelo que disseram, estariam todos em reunião. Pelo que vi a reunião já tinha acabado, e agora eles apenas conversavam entre si. Aproveitando a oportunidade para fazer network, pensei, enquanto bebiam café, suco e comiam biscoitos e pães de queijo. O que para nós era só mais um trabalho, para aqueles moradores era mais uma tragédia tão comum quanto as estações do ano.

 

 

ENQUANTO ISSO NAS REDES SOCIAIS…

No fim das contas, ficamos mais de oito horas na posição aguardando o que até hoje não sei. Felpamos. Agradeci por estarmos com nossa mochila de combate preparada para nos manter por dois dias no terreno. Não fizemos o network que poderíamos, mas alguns soldados ajudaram a descarregar um caminhão com cestas básicas e mantimentos mandados por uma associação de moradores. Eles foram os únicos uniformizados a ter iniciativa própria de botar a mão na massa longe de telefonemas e apertos de mão.

Em algum momento, no fim da tarde, recebemos ordens para voltar. Conferimos efetivo, embarcamos e partimos. Chegamos no batalhão, entregamos nosso material e aguardamos ser liberados. Eu estava fisicamente exausto e mentalmente estressado. Queria mais do que tudo chegar em casa logo.

Fui para casa. E antes mesmo de pisar na porta, recebemos um link em todos os grupos do quartel. Era uma postagem numa rede social do batalhão. Com uma legenda mais ou menos assim:

 

“Nosso batalhão atuou nesta madrugada, após ter sido acionado para cumprir missões de apoio a órgãos governamentais numa das regiões mais afetadas pelas chuvas na cidade, respondendo ao chamado da sociedade e mostrando mais uma vez o grau de prontidão da nossa tropa. Após as palavras e todas as orientações de seu Comandante, os militares partiram para missão que foi muito bem cumprida e retornaram no fim da tarde em segurança para o aquartelamento.

Frase de efeito!

Grito de guerra!”

 

Tinham cinco fotos. Numa delas, Soldados ajudavam a carregar doações enviadas aos moradores; em outra, um Soldado abraçava mulheres que sorriam emocionadas; numa outra, éramos nós embarcando na viatura; noutra, víamos casas no alto de um morro que ameaçavam cair e, em primeiro plano, o Major ao lado de várias autoridades; por fim, a primeira delas, era o Comandante dando suas ordens para nós no meio da madrugada. A publicação foi respostadas por diversos perfis oficiais. Nos comentários, pessoas aplaudiam nossa ‘ação’ e nos davam os parabéns. Pelo quê até hoje eu não sei…

O trabalho dos militares desde o primeiro momento da catástrofe no Rio Grande do Sul, maio de 2025.

O trabalho dos militares desde o primeiro momento da catástrofe no Rio Grande do Sul, maio de 2025.

 

ENQUANTO ISSO NA VIDA REAL

Havíamos sido acionados para uma missão que não aconteceu. Quem aciona uma tropa do Exército com a missão de esperar? É o tipo de coisa que cliques em navegadores e fotos em redes sociais não conseguem mostrar. Depois de ouvir tantas histórias reais de missões cumpridas por aquele mesmo quartel e por tantas outras unidades pelo Brasil em momentos de crise, calamidade e socorro, isso me deixou particularmente frustrado. Eu não me senti só chateado ou emputecido com a forma como aquela missão aconteceu. Mas, completamente impotente. Sabe aquela sensação de estar participando como um fantoche uma situação merda e não poder fazer nada? Era isso.

Não era só com o Exército em si, nem só comigo e com meus comandantes e companheiros. Era com o cenário geral em vários níveis em todos os sentidos. Era conosco enquanto sociedade. Era com o Brasil. Era com quem tinha dado a ordem de nos acionar, era com quem não tinha assessorado aquela e as outras ordens que vieram, era com toda aquela espera burocrática, governamental e ineficiente, era com aquelas curtidas e comentários ingênuos e sem critérios, mas, sobretudo, acima de todas essas coisas, era com o aproveitamento covarde daquela situação.

No ano seguinte, na mesma época, as chuvas voltaram. Apesar de não estar mais na unidade, pude ver de longe meus companheiros na mesma labuta de antes. E, mais uma vez, recebi um link com uma postagem de rede social. Repetindo a mesma história de prontidão e atuação, como uma propaganda eleitoral fora de época, e que parece não fazer só parte da esfera política. Mas, da esfera Brasil, desde muito antes de Guararapes.