NOVE E POUCA DA NOITE
Cheguei em casa.
Só queria me desligar de quartel. Tirei o tênis, larguei a mochila, sentei na cama e estiquei minha carcaça na horizontal para descansar por um momento. Só pensava na tora felpuda que iria executar logo logo. Em plena sexta-feira, é tudo que o pracinha quer. Ou queria. Do outro quarto, “caralho, que meeerda!”, meu canga de apartamento gritou. “Aaaah não, mentira…”, respondi do meu quarto já de moral completamente baixa.
Chuvas fortes eram comuns naquela época. Neste ano, porém, o volume estava muito acima do normal. Lembrei das palavras do comandante de companhia na formatura de final de expediente: “senhores, fiquem atentos ao celular, dessa vez acredito que seremos acionados”, para alegria e tristeza de todos.
A possibilidade de sermos acionados é sempre real num momento de crise. Mas, acabei aprendendo a não me estressar antes da hora. Mil coisas podem acontecer e nenhuma também. Com isso são mil e uma. Melhor relaxar enquanto se pode. Era o que eu estava tentando fazer depois de ter passado o dia todo de prontidão no quartel. Mas, logo hoje, tínhamos sido acionados. Não sabíamos do que se tratava, mas, para terem nos chamado, pensei, só podia ser muito sério. Não?
Ainda no quarto, assimilei rápido a situação. Levantei da cama e fui até a mesa pegar o celular. Visualizei a mensagem do Capitão (era real mesmo…), dei o meu ciente e liguei para os dois Cabos do meu Grupo de Combate para que entrassem em contato com os Soldados e me dessem um retorno. Peguei alguns materiais que tinha em casa e organizei numa mochila.
Sob a chuva leve que caia nas ruas completamente vazias da cidade partimos de volta para o quartel.
Sgt Marco Antônio, o Assombroso, realizando resgate de uma haitiana durante filmagens do terremoto, no Haiti, em janeiro de 2010.
QUASE DEZ HORAS
Fomos um dos primeiros a chegar. Passei pelo portão das armas e a guarda inteira — inteira, eu disse — estava acordada. Estranhei. “Precisa disso tudo mesmo?”, perguntei. “Não, mas ordem é ordem, né…”. Aparentemente, naquela ‘guerra’, o descanso previsto da guarda não era uma prioridade.
Fui para o alojamento. Vesti a farda, peguei roupas e meias de muda, um abrigo para chuva e outro para frio. Arrumei minimamente uma mochila de assalto e desci para o pátio. Outros militares foram chegando, entre eles um Aspirante de outra companhia recém chegado na tropa. Seria o escalado da boca podre da vez para comandar um pelotão da minha companhia.
Perguntei qual era a missão. Ele não sabia. Foi acionado e chegou o mais rápido que pôde, assim como nós. Nesse intervalo, os Cabos já haviam me dado o pronto. Em breve nossa fração estaria completa.
Um militar do Estado Maior do batalhão também chegou. A função dele seria ajudar na coordenação entre os órgãos governamentais envolvidos no que quer que fosse e nós, a tropa, o Exército Brasileiro. Ele chamou o Aspirante e os dois conversaram por um momento. O Aspirante transmitiu as primeiras ordens e o restante dos militares continuava a chegar.
Agentes da PM, Bombeiro, Defesa Civil e Exército atuando em resgates em São Sebastião-SP, fevereiro de 2023
ONZE E TANTA
De início, a ordem era apenas verificar as faltas do pelotão — ver quem já tinha chegado, quem não, porquê e se teria condições de chegar — e nos preparar para a missão (missão? mas, qual missão, senhor?). Raciocinei rapidamente enquanto ouvia e, do alto da minha ingenuidade, concluí: “porra, o mínimo eu já tenho, meu material individual está mais ou menos safo, vou me reunir com os caras mais safos do pelotão e…” Mas, não.
A preparação que eles queriam era completamente diferente da que eu estava imaginando. Era nada mais nada menos que uma mochila de combate, daquelas que usamos em acampamentos, marchas, etc. Digamos, na ‘guerra’. Ouvi aquilo e fiquei tipo: “caralho, será que eu perdi alguma coisa?”
Repassei os pensamentos: ‘excesso de chuva = enchente, alagamento, desabamento, que é igual à missão de apoio à órgãos governamentais…’ E cheguei a uma conclusão: “O que precisamos para essa missão é exatamente uma mochila aprestada para combate!”. Pronto, fui feliz.
Não fazia o menor sentido. Na minha pouco esclarecida esfera de conhecimento a situação exigiria qualquer coisa menos uma mochila de campo. Se pediram apoio ao Exército, só havia uma possibilidade: entraríamos na lama. E tudo bem, problema nenhum entrar na lama, mas onde uma mochila ajudaria nessa situação?
Levei a situação ao Aspirante. Resposta dele: “cara, é ordem”.
Ao ouvir o poder mágico daquelas palavras, me tornei o executante perfeito. Perdi toda minha capacidade de raciocínio e parei de pensar. Perfeito. Abrimos uma reserva de material e montamos nossas mochilas com itens como saco de dormir, isolante térmico, poncho, cabo solteiro, cantis, marmitas e canecos. Os poucos que estavam disponíveis, nas condições que já conhecemos. Decidi manter a mochila que tinha preparado.
Deveríamos estar preparados para “passar dois dias no terreno”, segundo ordens. “Dois dias no terreno? Que terreno? Onde, como?”, eram muitas perguntas sem respostas para tão poucas e incompletas ordens. Enfim, não se apaixone pelo problema.
Bebê resgatado pelo 3º Sargento Lucas Ferreira Leite, em Bom Retiro do Sul-RS, maio de 2024
MEIA NOITE, UMA, DUAS DA MANHÃ…
Todo pelotão havia chegado. Foi dado o pronto para o militar do Estado Maior.
Ninguém sabia ainda o quê nem quando nem como nem onde nem nada, pelo menos na raia miúda. Apenas que deveríamos aguardar. Aguardar, aguardar, aguardar… Isso a gente já estava fazendo. Macaco velho já não muito novo, sabia que o Comandante falaria conosco. Ele chegou. Recebeu a apresentação do Aspirante. Começou a falar.
Um militar da comunicação social chegou com ele registrando algumas imagens. Era um pelotão em forma sob a chuva no meio da noite ouvindo orientações diretas de seu Comandante. Fiquei observando aquela cena: um militar posicionado à frente de sua tropa, fazendo gestos ensaiados quase como se posasse para a foto, falando frases prontas debaixo da chuva, enquanto um cara com uma câmera rodava de um lado para o outro capturando seus melhores cliques.
Uma dúvida me veio à mente: como alguém conseguia pensar em fotos num momento como aquele? Sério. Como? Nas suas palavras, ele falou da importância de estarmos sempre prontos e adestrados, que a razão disso era aquele momento, que nosso quartel era fundamental naquela cidade, etc, etc, etc. E partiu. Batendo as gaivotas que alguma cartilha deve orientar. Só não explicou o porquê de estarmos ali nem do que aquele acionamento se tratava.
Estávamos ansiosos, possibilidades pipocavam na nossa cabeça. Alguns Soldados tomaram a iniciativa e começaram a pesquisar notícias na internet. Num jornal, ficamos sabendo de casas numa encosta que ameaçavam cair, de bairros completamente alagados em outras regiões, além de mensagens de parentes relatando outras situações em diversos outros pontos da cidade. “Nossa rede de informação clandestina tá ‘falando’ mais que a do quartel”, um deles comentou. Tínhamos quase nosso próprio gabinete de crise.
Dúvida, frustração, raiva, receio, tudo nebuloso. A falta de um porquê agravava nossa espera. Soldados perguntavam para os Cabos que perguntavam para nós, Sargentos, que perguntávamos para o Aspirante que não perguntava ao Major. Só pedia para termos paciência com as informações e as ordens que não chegavam. Sabíamos também que o Major não passaria a dúvida para o Comandante que também não passaria para o mais antigo que ele e assim por diante. Afinal de contas, por que é que estávamos ali esperando? Só esperando. Às escuras. Sem ordens claras, sem nada. Talvez eles até soubessem, não sei, mas nós absolutamente não.
Pelo menos é assim que imaginamos na maior parte das vezes, que os mais antigos lá em cima preferem guardar informações a fazer com que elas cheguem na ponta da linha. O fato é que findadas as preparações só nos restava esperar. E aguardamos. Aguardamos mais um pouco, depois aguardamos mais e depois disso aguardamos ainda mais. Uma hora… duas horas. Até que finalmente decidiram nos liberar.
Lembrei da guarda, será que tinham sido liberados também?
As imagens que ilustram esse texto são de ocasiões em que entramos na lama. São reais.
Aguardem a parte II.