Após uma formatura de rotina, um certo militar fez questão de descer do palanque para ‘sugerir’ que um soldado melhorasse seu padrão de ordem unida. Este militar era nada mais nada menos que o comandante do batalhão.
O recruta havia errado o movimento com o armamento e perdido o passo enquanto desfilava em continência ao comandante. O capitão, comandante da companhia, entendeu o recado e logo sugeriu que alguém melhorasse os padrões de ordem unida do recruta. Um lobinho, safo que sou, tomei posição de sentido, fiz cara de puto e bradei: “Brasil, capitão!”. Como quem diz: ‘deixe essa missão boca podre com o lobo!’.
Eu já conhecia esse recruta. Desde o início do ano ele se diferenciava dos demais por sua assustadora dificuldade em coordenar seus próprios movimentos motores. Ele simplesmente não conseguia fazer ordem unida de jeito nenhum! Em praticamente todas as instruções ele era tirado de forma para receber a atenção especial de um único instrutor. Porém, se ele ainda continuava errando. Alguém precisava corrigi-lo.
Um pouco sobre a história da Ordem Unida
A ordem unida é uma atividade militar “caracterizada pela obtenção de determinados padrões coletivos de uniformidade, sincronização e garbo militar que deve ser considerada, por todos os participantes, como um significativo esforço para demonstrar a disciplina militar”, segundo o manual de Ordem Unida do Exército Brasileiro. Em outras palavras, é uma forma de se treinar a disciplina, a coesão da tropa e o exercício da liderança de seus comandantes. E, mesmo que a rotina apague isso, essas coisas acontecem.
Antigamente, quando o homem se preparava para combater com suas armas rústicas e formações incipientes a ordem unida já estava presente padronizando procedimentos, movimentos e formas de combate. Até que um russo determinou que diariamente seus súditos executassem movimentos a pé firme (parados) e em marcha com a finalidade de desenvolver, principalmente, a disciplina e o espírito de corpo.
O Exército Brasileiro teve seus primeiros movimentos de Ordem Unida herdados do Exército Português e também sofreu influências germânicas e francesas.
Ordem Unidam!
E lá estava eu ensinando ordem unida para o recruta em pleno domingo… Sim, no domingo, um pequeno detalhe que esqueci de comentar. Quando cheguei, por volta das sete horas, o ‘peixe da ordem unida’, como ficou conhecido o recruta, já me esperava em frente a companhia. Assim que me viu prestou uma continência bisonha e disse, “bom dia, sargento!”. Eu, sem muita paciência, respondi um bom dia arrastado. No caminho para o alojamento, decidi que me dedicaria a realmente ensiná-lo, afinal, ele tinha uma dificuldade fora do comum.
De qualquer forma era uma missão. Eu já estava lá mesmo… Além disso, não havia a possibilidade de mais algum soldado ser retirado de forma por conta de erros esdrúxulos. Ele precisava estar bem para a próxima formatura. Ou vocês acham que o coronel não procuraria ele no meio do bandão?
Subi. Quando botava a farda ouvi alguém gritar “ordem unidam!”. Fui até a janela para confirmar minha aposta: outro recruta zombava da situação de seu companheiro. No Exército há um bom ditado para isso: quem perua, quer piru! E esse peru não é no bom sentido. Sugeri que o peruão também participasse do treinamento conosco.
Quando desci, o ‘peixe da ordem unida’ já treinava os movimentos com armamento. Pedi que ele apressasse o meu peixe, o peruão, no alojamento. Decidi pegar um fuzil também para ganharmos tempo treinando. Assim eu não precisaria pegar o fuzil deles para demonstrar, e eles poderiam copiar meus movimentos executando junto, como um espelho.
Isso também funciona como um motivador psicológico obrigatório: ‘se até o sargento pegou o fuzil para treinar, ai de mim de acochambrar!’. E é assim mesmo que funciona, é exatamente dessa forma que eu cobraria o esforço e a dedicação deles. Essas coisas você vai aprendendo com o tempo. Nem tudo é puramente na base da porrada.
Segui a determinação do capitão de treiná-los no pátio bem debaixo da janela do coronel. Naquele domingo, não só um sargento e seus soldados estavam no quartel. O próprio comandante também estava. Talvez por isso tenha dado a missão de treinar o recruta naquele fim de semana. Só talvez… E talvez por isso também o capitão tenha sugerido que treinássemos em frente ao pavilhão de comando. Só bizu-master!
Minha intenção não era treinar até a perfeição, mas ter certeza de que o recruta, pelo menos, não perdesse o passo nem tivesse dúvidas com relação aos movimentos. Para isso, massificaria os movimentos em marcha e a pé firme com muita repetição primeiro. Só depois bateria as gaivotas da formatura que era a finalidade de estarmos ali.
E começamos a treinar. No início eles estavam reativos e precisei dar uma arroxada um pouco além do previsto neles. “Não ficou bom, faz de novo. Não, de novo. De novo. Não… Só vamos parar quando ficar bom. De novo! Agora vai, faz de novo! DE NOVO!” Assim fomos durante boa parte da manhã. Se a perfeição for o cumprimento do objetivo e a exaustão for os recrutas estarem de saco cheio de me verem clicando eles, levamos a cabo o ditado que diz que a repetição com correção até a exaustão gera a perfeição.
Após algum tempo, adivinhem quem apareceu no pátio caminhando despreocupadamente em nossa direção? O próprio! Mantive a marra e continuei ensinando os soldados. Quando ele estava mais próximo, me adiantei e o abordei com um bom dia. Ele respondeu, deu sinal para continuarmos e continuou caminhando. Um momento depois ele retornou. E como quem não sabia de nada, perguntou se os dois bisonhos estavam precisando treinar ordem unida…
Entre outras coisas além da Ordem Unida
Quando as coisas começaram finalmente a render de verdade, decidi fazer uma pausa. Bebemos água, respiramos e descansamos um pouco para retornarmos novamente e atingirmos um nível aceitável. (Devo ser uma mãe mesmo…) Não é que tenha pegado leve, o dia não foi fácil para eles, e tenho certeza que saíram de lá meio quebrados. É que tem momento para tudo.
Num desses momentos, comentei com eles a importância de fazermos o melhor que pudermos sempre que for possível. E usei o exemplo de estarmos ali treinando algo que parecia banal em pleno domingo de manhã. Disse que não dá para ser bom em tudo, mas que isso é natural. Pode acontecer. E que a única forma de corrigir qualquer deficiência é se preparando, treinando. Exatamente o que estávamos fazendo.
Muitas vezes não entendemos bem nossa função. Somos sargentos. Nossa função é educar, instruir, disciplinar, assegurar a observância das ordens, liderar. Porém, acredito que não seja só isso. O sargento é muitas vezes o melhor e mais próximo exemplo que o soldado pode ter. De fato, como eles falavam na formação, o soldado faz o que é ensinado. E se o chamamos de bisonho, logo, estamos dando um tiro no nosso pé.
No fim das contas, o soldado não se destacou mais negativamente em nenhuma outra formatura. E depois daquele dia não lembro de presenciar mais nenhuma descoordenação motora ou outro tipo de problema com ele. Durante toda aquela manhã pude ver em seus olhos o esforço para melhorar. Mas, minha ficha caiu só depois. Quando percebi o quanto ele era determinado, disciplinado e leal. Era um excelente soldado para o qual dei voto positivo para o engajamento. E do qual eu tenho muita alegria de ter feito parte de sua formação.
Lembrei dessa história outro dia quando tirávamos serviço. Ele comentou com olhar saudoso: “sargento, aquele domingo o senhor ralou a gente” E eu, “domingo? que domingo?” Ele continuou: “aquele dia que eu fiz o senhor vir aqui me ensinar ordem unida, que aquele peruão veio me zoar e o senhor colocou ele pra treinar também hahhaha” Rimos um pouco disso e eu neguei, claro, pois nunca lembro dessas histórias malucas que eles contam. “Depois daquele dia, sargento, não errei mais na ordem unida…”