Não se apaixone pelo problema

Em certas ocasiões, quando converso com os Soldados, costumamos falar sobre o Exército e sobre dúvidas e anseios da vida pessoal. Também aproveitamos para dar boas risadas contando histórias tristes de embustes furados. Para mim, uma boa oportunidade de olhar nosso Exército sob a perspectiva deles.

Dia desses, um recruta, após seu primeiro acampamento, perguntou se sua formação era boa. De duas uma, pensei comigo: ou ele só estava curioso, ou percebeu algo não muito bom em suas últimas vivências militares. De qualquer maneira, me senti inteiramente responsável por qualquer dúvida dessa natureza que estivesse rondando sua cabeça, seja ela qual fosse. Onde há fumaça, há fogo.

 

A MENINA DOS OLHOS

Era minha instrução no campo, e a menina dos olhos do Comandante do Batalhão. Militar bastante especializado, e exigente, tinha a curiosa mania de deixar seus subordinados em cheque com questionamentos perspicazes. “É dever de todo militar saber se orientar”, disse um dia. “Na sua visita ao campo do recruta, é quase certo que ele irá fazer uma passagem na sua instrução de orientação”, o Capitão veio me dar o bizu, como quem dá um alerta.

Com esse alerta sutil, lá fui eu, revisar todo o papiro teórico, enquanto planejava as primeiras instruções de orientação para os Soldados do Efetivo Variável, famosíssimo Soldado EV. Imbuído da missão, sacrifiquei um domingo inteiro nisso. Na semana seguinte, daríamos continuidade às instruções e à preparação do Recruta para o campo.

Recruta ou está com muita dúvida ou é muito curioso. Mas, às vezes ele tem razão…

Porém, na segunda-feira, para minha surpresa, a parte teórica não aconteceria. O bagulho já seria na prática! Surpresa é eufemismo, a bem da verdade, eu tinha sido emboscado no padrão por tropa amiga.

Os soldados, que mal deviam saber de que lado o sol nasce, saberiam utilizar uma bússola? ‘Com certeza!’, deve ter sido a resposta na cabeça de quem deu essa ordem. Sem saber qualquer conhecimento, eles já partiriam para o valendo, executando uma pista escola de orientação. Contrariando qualquer lógica, didática ou processo de ensino-aprendizagem, eles teriam que correr primeiro para só depois aprender a engatinhar.

É como naquele velho Exército de Caxias: às vezes a atividade inopinada é para o próprio instrutor. Algo me diz que era esse o caso. Mas, tudo bem, lá fui eu, como todo bom Soldado, cumprir minha missão. Saquei uma pista de orientação de sei lá onde e montei a dita cuja no intervalo do expediente da manhã para a tarde, mais conhecido como almoço. Missão é missão, confere? Vamos que vamos! Sem paixão.

 

SURPRESA, INSTRUTOR!

Usando aquelas habilidades que você só desenvolve no sanhaço, consegui algumas bússolas emprestadas com militares do Batalhão, batendo de porta em porta. Nas companhias não havia bússolas o suficiente, e as poucas que tinham ninguém sabia com quem estavam — essa era uma das tarefas que eu precisaria fazer hoje, conforme eu tinha inocentemente planejado.

Quem diz que planejamento dura até o primeiro tiro, não viveu. Parecia que meu plano era tomar um tiro, de tão bem que ele funcionou (ou não funcionou, nem sei mais). Para os pontos, usei prismas improvisados de garrafa PET — já que no batalhão também não tinham prismas. Era outra coisa que eu tinha pensado que ia desenrolar naquele dia pedindo a outra OM. Mas só pensado mesmo. Enfim, era isso. Vamos em frente!

Também tomei o cuidado de limpar e preparar a área da instrução, apesar da correia, pois sabia que ‘enfeitar o pavão’ era melhor que ser mijado por não ter me preparado (tsc, tsc, tsc…) para minha própria instrução. Afinal, como sabemos, parecer é muito melhor que ser.

De qualquer forma, dei meu gás. Tudo certo, o recruta precisava aprender. E eu queria ensinar. ‘Então vamos cumprir a missão’, pensava o lobinho. No caso eu, naquela época, quando ainda me apaixonava.

Quinze minutos depois do horário planejado, apareci na região da instrução, organizei tudo rapidamente e fui buscar o primeiro grupamento de recrutas para iniciar a atividade. Não haviam Cabos ou Soldados para me auxiliar, pois todos tinham sido transferidos em massa para a Companhia Operacional do Batalhão (que não tinha prisma nem bússola). Os outros três Sargentos da Companhia também estavam fora, em outras missões, tão em chamas quanto eu. A instrução começou com atraso de meia hora, em tempo de ser mijado por estar atrasado para minha própria atividade(!).

Sem problema, é isso aí! A parada vai sair, segue o jogo…

Safamente, enquanto ia montando a pista e correndo atrás do material para a instrução, já matutava dentro da cabeça o quê, das mais de 20 horas previstas de instrução, eu deveria passar em menos de uma hora para militares inexperientes e sem qualquer conhecimento prévio. O cenário era desafiador, para não dizer que era um caos.

Mas, é isso, vamos lá, vai dar bom, Brasil, bora, partiu.

Melhor não se apaixonar…

A menina dos olhos… Não, pera (Linda Clarke ficou famosa nas redes sociais após ameaçar acabar sozinha com o ISIS, 2024)

 

ONDE TUDO É PRIORIDADE, NADA É PRIORIDADE

“De alguma forma, lááá no final, alguma coisa vai dar ‘certo’”, repeti para mim mesmo. Mas, beleza, vamos lá! Eram quatro pelotões. O pelotão de segunda estava safo, instrução ministrada. Sem alteração. Faltavam três. Depois do sanhaço inicial, agora era só fazer meu trabalho. Voltamos ao normal. Finalmente. Excelente. Por hora, eu tinha vencido. Ou melhor, sobrevivido.

Porém, contudo, todavia, entretanto, como nada no Exército pode ser fácil — aliás, como tudo parece ser desnecessariamente difícil e incrivelmente desgastante —, no dia seguinte, não consegui ministrar minha instrução mais uma vez. Ou melhor, minha nada, não tinha nada meu ali, zero amor, a instrução era do e para o Exército. Nada mais. A palavra de ordem para momentos como esse é profissionalismo, sem paixões.

Pelo que não entendi, uma ‘atividade importante’ tinha aparecido. Mas, calma aí, pera, como assim ‘aparecido’? Pois é, ‘apareceu’, como um truque de mágica. O que parecia mesmo era que as atividades estavam sendo decididas por sorteio.

Às vezes, muitas vezes, aliás, eu prefiro pensar que sou moderno demais para entender certas coisas. Que algumas coisas só são entendíveis pelas cabeças pensantes lááá de cima, de algum lugar que ninguém nunca vai acessar. Aí eu lembro das reuniões semanais de planejamento. E me pego pensando, com todo respeito, o que é que tanto é conversado nessas reuniões que na ponta da linha parece que os mesmo problemas de sempre jamais serão resolvidos.

Mais uma vez, com todo respeito, não consigo entender. Penso que talvez os nossos ‘problemas’, na ponta da linha, não sejam de fato problemas. E que talvez só sejamos uns reclamões sem causa. Pode ser… Concordo parcialmente, e com ressalvas em alguns casos. Não vou me isentar da responsabilidade. Mas, será que é mesmo? Será que sempre é assim toda vez? Não. Pelo menos não na maioria delas.

Com a chegada da tal ‘atividade importante’, somente dois pelotões tiveram orientação naquela semana. Faltavam dois. Beleza. Comentei sobre a situação com o Capitão: “semana que vem você passa os outros dois, tá tranquilo”. Tranquilo não sei onde. Mas, tudo bem, semana que vem vai dar certo. Só não se apaixonar.

Acho que se a instrução fosse de Harlem Shake, ainda assim não teria saído… (Militares da Academia da Força Aérea dos Estados Unidos fazem sua versão de Harlem Shake, 2013)

Porém, na semana seguinte, mais atividades. Provavelmente muito mais importantes que as anteriores e muito mais ainda que a instrução. Era uma solenidade em comemoração a alguma coisa. “Mas, e a instrução de orientação do recruta?”, perguntei. “Cancelada”, o Capitão respondeu, “atividade agora é ordem unida, preparação para formatura. Ordem do Comandante”. E o campo dos recrutas chegando…

Foi assim mais uma semana. Fiquei me perguntando por que não fizemos mais ordem unida antes, no período de internato? Por que não deixamos essa ordem unida para qualquer outro dia? Sei lá! Afinal, por que não podíamos priorizar a instrução? Mas, o fato de ter recebido uma missão que envolvia formação, para uma atividade de campo que envolve riscos, que já chegou com uma clicada em tom de alerta ao mesmo tempo que era sabotado por ‘N’ motivos por diversas semanas consecutivas, não me parecia normal. Não deveria ser normal.

Resultado: mais uma semana sem instrução.

Na semana seguinte, aconteceu o primeiro acampamento do Recruta. Minha preocupação, era no mínimo justificada. Aí, sim, lá eu finalmente consegui não ministrar, mas conduzir uma atividade de orientação. Eu estava indignado. Mais uma vez o Capitão alertou que o Comandante visitaria a instrução, sua menina dos olhos feios, que era bom eu me preparar, mesmo não me dando os meios adequados. A pena seria ser taxado de mal profissional.

Fato é que os soldados não estavam aptos a executar aquela atividade. Eles, que mal sabiam utilizar uma bússola, iriam se orientar no terreno, em equipes, mas sozinhos. Um risco desnecessário, para início de qualquer conversa séria.

Mas, tudo bem, o bizu é não se apaixonar.

 

NÃO SEJAMOS ENGOLIDOS PELO PROBLEMA

A Regra Número 2 é um livro com relatos de uma psicóloga da Marinha dos Estados Unidos que serviu como integrante de uma unidade médica no Iraque. Ajudando a “cuidar de feridas que um cirurgião jamais veria”. Lá ela vivencia uma verdade dura baseada em duas regras:

Regra número 1: jovens morrem na guerra;

Regra número 2: ninguém pode mudar a regra número 1.

Isso me faz pensar.

Não se apaixone pelo problema… (A Regra Número 2: lições em um Hospital de Guerra, de Heidi Squier Kraft)

Nossa missão é estar prontos. Mas, ainda que a morte de jovens em conflitos armados não seja realidade de nossas Forças Armadas, nossa missão é trabalhar para deixar o Exército sempre pronto. Sempre não é farofa, não é retórica nem embuste. Sempre é sempre. Inclusive, sempre inclui todos. E sempre inclui um profissionalismo necessário.

 

A REGRA NÚMERO DOIS É NECESSÁRIA

Diariamente, na profissão que escolhi por seus valores, tento digerir a regra número dois que martela forte a minha cabeça. De que, por mais que eu insista, as coisas não vão funcionar como deveriam. O ambiente de cultura arcaica que tanto nos atrapalha a sermos profissionais não vai mudar, a mentalidade de que as coisas estão boas da maneira como estão vai permanecer.

Quando um recruta levanta um questionamento sobre sua própria formação, vejo a morte simbólica de um militar. Quando a formação é de qualidade, profissional, de ferro como tem que ser, não há dúvidas.

A regra número um parece gritar: ‘as coisas são assim, só aceite, pronto!’ Independentemente do que se faça, não há como mudar a regra número um. Jovens vão morrer na guerra. Ou, ‘caga, instrução para Recruta é rolha!’

Por isso, a regra número dois. Ela nasce para nos lembrar de não nos apaixonar por problemas sem solução. Para não sermos engolidos por eles. Para conseguirmos responder para o soldado que a formação dele é boa, sim, mas poderia ser melhor com certeza, como tudo na vida. Mesmo que saibamos, lá no fundo, a verdade, de que, não, ele deveria ser muito melhor.

Não se apaixone pelo problema.