No início da nossa formação militar, tudo dá medo. Quando não medo, receio. Na bucha, medo! Nessa fase, ficamos sempre apreensivos e temerosos pelo que pode vir a acontecer. Em alguns dias, pequenas coisas podem se tornar motivo para a gente achar que está sofrendo. Noutros, tudo pode parecer mais difícil. Foi num desses dias que um instrutor falou algo que me deixou meio no sanhaço.
Era uma instrução de ordem unida. Uma semana inteira de preparação para mais uma importante formatura do batalhão. Eu estava no Período Básico, as coisas estavam um tanto mais intensos que o normal. Nos sentíamos exaustos da massacrante rotina de passar dias e dias inteiros treinando movimentos a pé firme e em marcha. Sem muita paciência para quaisquer atividades e totalmente sem saco, eu diria.
A cada movimento errado que executávamos, o bem-aventurado instrutor — sem pena — ajudava a ‘oxigenar’ nossos cérebros. Com alguns exercícios, fazia o favor de colocar nosso sangue para circular um pouco mais forte na nossa carcaça. E, para estimular nossa vivacidade, comandava alguns vários frente para retaguarda, para retaguarda, para retaguarda… indefinidamente.
Aquilo dava uma raiva do caralho. E um certo medo. Era como se ele quisesse, pura e simplesmente, nos fazer sofrer. Nos causar dor. Batendo exatamente onde mais doeria naquele momento. Ou pior, era como se sentisse prazer com aquilo. Implacavelmente. Eu só conseguia pensar que ele era uma pessoa ruim, um babaca. E que estava ali só para sacanear com a gente, os pobres aluninhos do curso de formação.
“ALUNO, DÁ TEU JEITO, AMADURECE!”
Ingênuo. Nem tudo ali era trabalho dele. Não exclusivamente. Uma boa parte era proporcionada pelo próprio ambiente militar. Somado a rotina totalmente nova com a qual ainda nos acostumávamos. Outra parte era a evidente falta de calo mental. Ainda com todas as mudanças repentinas às quais estávamos sendo submetidos a cada momento. Tudo aquilo, claro, estava sendo muito bem catalisado pelo nosso estimado instrutor. Porém, apenas uma pequena parte, a qual era seu trabalho.
Entretanto, a outra parte, era feita por nós mesmos. Éramos, naquele momento, engrenagens tão importantes quanto qualquer outra naquela agrura. Se é que podemos considerar assim. Pois, para que uma atividade tão banal quanto uma ordem unida se tornasse motivo de tamanho ‘sofrimento’ (o que não era o caso ali) precisávamos estar muito fraquinhos mesmo.
De certa forma, era realmente sofrível. Mas, não da forma como tanto estávamos acreditando. Não era aquele sofrimento fútil de padecimento ou dor. Era um sofrer mais puro, no sentido mais útil da palavra: sofríamos mudanças físicas (a mais óbvia) e emocionais (a mais dura de ser apreendida), para citar apenas duas.
Fato é que, de todos esses ingredientes, foi a postura e uma dita cuja frase do instrutor que me deixaram num verdadeiro imbróglio mental. Eu estava abalado, desesperançoso e preocupado. Estava realmente derrotado. O instrutor, alvo do nosso lamento, só estava fazendo muito bem sua parte. E de uma forma muito profissional e bem conduzida, percebo hoje.
OS ENSINAMENTOS POR TRÁS DOS JARGÕES E DITADOS MILITARES
Quando entramos na vida militar somos totalmente inocentes. E aquilo foi algo que atacou muito minha ingenuidade daquela época. Era como uma espécie de aviso. Soava quase como uma ameaça. Deixando claro que ninguém deveria esperar coisas boas daquele lugar.
Não éramos bem vindos. Nem deveríamos ser. Talvez fôssemos até indesejados de alguma forma. Era como se nossa presença envergonhasse todos as gerações anteriores. Pior, era como se tivéssemos perdido a honra do nosso pertencimento. Deveríamos conquistá-la a todo custo novamente para, talvez, fazer jus a estarmos ali. Precisávamos corresponder, nos tornar o que nos propomos. E aquelas dificuldades eram o caminho tortuoso, mas necessário para cumprirmos o objetivo que escolhemos.
O sol estalando o couro de nossas cabeças, as roupas suadas pregando por toda parte. A planta dos pés, a lateral das coxas, as palmas das mãos doloridas. Costas, pescoço e pernas combalidas. Não seria difícil acreditarmos no que era incansavelmente repetido dia após dia.
Fome, cansaço mental, desconforto físico, vontade de fugir. Nenhuma novidade. Tudo são coisas que já experimentamos pelo menos uma vez na vida. Até bebês sentem isso. Entretanto, tudo se torna motivo para buscar qualquer alento. Esses são os sinais, os gatilhos. Primeiro na mente, depois no corpo. Esteja atento.
Tempos depois, aquela maldita frase ainda ecoava fundo na minha cabeça. Somente após me formar, já com alguma vivência de tropa, algum tempo a mais de vida, é que pude perceber seu verdadeiro significado:
— “Aqui é só dor e sofrimento, Aluno!”
De fato, era uma realidade. Que ele fazia questão de atirar na nossa cara. E com a qual precisaríamos lidar em algum momento, ali ou no futuro, pelo resto da carreira. Lidar não, enfrentar — encarar, defrontar, atacar de frente. Afinal, não se engane, o Exército não é justo: a própria vida não o é!
O problema era inteiramente nosso. Deveríamos confrontar a dor. Precisávamos contestar o sofrimento. Claro que sentíamos medo. Sentíamos impotência, insegurança, sentíamos tudo, mas era aquilo mesmo. Era como se dissessem: ‘aluno, dá teu jeito, amadurece, porra!’. E só havia uma saída digna.
AOS TRANCOS E BARRANCOS
Amadureci. Pelo menos em relação àquela época. Entendi melhor a importância de me manter mentalmente pronto para o pior. De não esperar coisas boas acontecerem o tempo todo. De não ser refém de qualquer incerteza, mas de construir internamente sua própria condição. (Ainda que, muitos anos depois, eu tenha me colocado em desafios que me fizeram parecer mais uma vez aquele aluno fraco.)
Ordem unida, atividades militares controladas e solucionáveis, instrutores obstinados, dificuldades simuladas, são só pequenas pedras no caminho. A vida não tem plano de sessão, não tem roteiro, nem tempo determinado para começar ou acabar, não depende de nada, nem obedece à nada, tampouco a ninguém.
O que interessa é a caminhada. E nesse caminho não há regras definidas, elas se fazem enquanto se anda. É uma questão de postura em relação à própria vida. Uma questão de se responsabilizar por si, de ser homem! Ou mulher, que seja, um adulto! É se posicionar diante do que se apresenta. Não se colocar como depender de situações confortáveis para sobreviver. Isso nunca te libertará, e jamais o fará crescer. Afinal de contas, é preciso viver.
Com o tempo, coragem e o trabalho de verdade sendo feito, você acaba deixando de ser tão indulgente. Quando perceber que passar pela dor e pelo sofrimento, mesmo aos trancos e barrancos, sem perder o sangue no olhar, o fará sair do outro lado mais forte, a dinâmica muda. Até que você caia de novo, e se levante de novo. E caia de novo para se levantar de novo. Siga em frente apesar do medo, sem perder a humanidade.
A vida é, de fato, é só dor e sofrimento, sim! E o problema é todo seu. Dá seu jeito. Amadureça.