Nos Jogos Olímpicos de 2016, tive a oportunidade de dividir um pouco do dia a dia com os Comandos como integrante da Força Tarefa de Operações Especiais do 1° Batalhão de Ações de Comandos (FT BAC).
Num dia, eu estava de bucha fora dos pelotões que seriam empregados. Raciocinava com escala de serviço, tarefas administrativas e qualquer outra rolha. Em outras palavras, ficaria quicando em missões burocráticas enquanto todo mundo se adestrava.
Porém, como as coisas mudam muito rapidamente no Exército, no outro dia, do nada, lá estava eu de bucha numa sala recebendo um briefing de um Operador de Forças Especiais.
Nada mudou, eu ainda era um bucha. Mas, para quem estava prestes a ficar de fora da missão dos Jogos Olímpicos, até que melhorei.
E, não, minha fração não atuaria diretamente com os Comandos. Seríamos uma espécie de ‘aspirador de pó’, um pelotão de extração, como brincávamos.
O AMBIENTE
Eles ocuparam toda uma seção de um prédio cujas instalações também ocuparíamos. Pela manhã, ao chegarmos, subimos três lances de escadas que davam acesso ao último andar. Entramos num largo corredor que seguia em direção ao que seria nosso alojamento. Ali nos deparamos com um aviso colado abaixo de um grande crânio de olhos penetrantes, mas inexpressivos.
O crânio, parado logo após a nossa porta, dizia: “ACESSO RESTRITO”. Claramente um recado. Talvez não fosse boa ideia passar daquele ponto. Fiquei atônito sobre o que poderia haver por trás daquela caveira, metafórica e literalmente falando.
Aquele não era como o ambiente ao qual estava habituado. Para todos os lugares que se olhava havia algum símbolo ou lembrete deixando claro que as coisas ali funcionavam de um modo diferente. Havia uma aura singular. Tudo ali — da tarefa mais simples à atividade mais complexa, de uma mesa de café numa área comum às informações e mapas afixados às paredes — absolutamente tudo naquele local girava em torno do cumprimento da missão.
Os temas das conversas mais triviais eram quase sempre relacionados a adestramentos, tiro, armamentos, explosivos, entrada tática, tudo que quem quer viver a guerra poderia querer. Era exatamente o ambiente que todos nós pleiteamos quando decidimos ingressar nas Forças Armadas. Ou pelo menos alguns de nós. Ou talvez nem isso… (tsc tsc tsc).
No caminho para o almoço, um dos Comandos comentava que iria ajustar melhor um item no equipamento para evitar qualquer sanhaço na hora de desembarcar do helicóptero. Enquanto outro respondia que se ele desse algum vacilo, receberia logo uma terceira via para carregar; aqueles alicates pequenos e leves de cortar correntes.
O clima era de puro foco, de muita seriedade, autoaperfeiçoamento e busca pela melhoria contínua de tudo o tempo todo. Uma espécie de obsessão constante pela excelência. Afinal de contas, o menor erro poderia significar um fracasso não somente individual, mas do nome que eles carregavam em suas próprias ações. A derrota parecia ser inadmissível naquele ambiente. Pois, poderia significar a morte.
Aquele ambiente instigava o profissionalismo e a dedicação. E a vontade que me deu foi a de respirar aquele ar pelo resto da minha vida.
A QUESTÃO FAMILIAR
Numa noite, depois da ceia, eu e outros militares do pelotão nos sentamos numa sala comum de estudos e descanso. Enquanto passávamos nosso tempo aproveitando nossa rotina fora da correria do quartel, alguns militares da FT BAC liam livros, aprendiam outras línguas, assistiam filmes, papiravam. Mas, principalmente, conversavam com seus familiares.
Para nós, a missão funcionou como uma grande aventura, já que nada aconteceu. Para eles, era mais uma missão real. A quilômetros de casa a mais de um mês numa batida forte de adestramentos e missões bem longe da prole, como eles mesmos diziam. Por isso, eles aproveitavam o tempo de um modo diferente. Mais produtivo que nós, eu diria.
Num dos cantos da sala, observei um militar falar ao telefone. Até aí tudo bem, eles sempre faziam suas ligações. Hoje ainda havia esse recurso que ajudava bastante.
— “Antigamente até as ligações eram limitadas, mas só elas não amenizam a dor da distância”, ouvi de um deles.
Fiquei reparando na ligação, sem olhar. Provavelmente falava com a esposa, pensei. Talvez perguntasse se ela estava bem, ou como as coisas estavam em casa, se ela tinha conseguido resolver esse ou aquele problema. Ou até tentasse propor uma ou outra solução, já que é mais fácil para quem está de fora. Quem sabe arriscasse uma brincadeira leve para amenizar a distância. Ou talvez, dissesse que sentia saudade (ou eles não sentem saudade?), refleti.
Foi quando presenciei um momento daqueles que te fazem parar e raciocinar um pouco sobre a própria vida. Capturei por um instante o semblante de um combatente olhando para a pequena tela de um celular enquanto dizia:
— “Oi minha filha, fala com papai… fala ‘oi’ pro papai, filha… tá vendo papai?…”
Pelo visto era um bebê nascido a bem pouco tempo. E que provavelmente não teve muito contato com o pai, a não ser por uma chamada de vídeo, que é bom, claro, mas não preenche nenhuma ausência física. Uma filha de um mês cujo pai viu por uma semana e cuja voz, por sorte, conseguiu ouvir todos os dias, acabei confirmando depois.
O outro lado dessa história é que além do Comandos, muitas vezes há uma esposa e uma mãe. Uma mulher que cuida da família, da casa, da rotina, das decisões, dos problemas, das alegrias e das tristezas, de tudo, e por vezes não se pode dar ao luxo de contar com o marido para dividir o dia a dia. É um sacrifício incomensurável. Coisas de esposa de Comandos… E é mesmo difícil imaginar o quanto essas missões devem ser desgastantes para elas.
Dias depois, porém, vi outro combatente se queixar da esposa que ainda o acusa de desistir quando ela mais precisava.
— “Depois de tudo que fiz? Ela sabia como é a vida aqui, algumas coisas não dá pra negociar, eu fiz o que podia, ela sabe, mas tudo piorou depois que a mãe dela morreu. Ela sabe que não abandonei o barco, mas é difícil, a gente quer ajudar, mas fica chateado…”, dizia para outro companheiro.
O SOLDADO GORRO NEGRO
Não pude deixar de notar o diferencial do Soldado Comandos, algo com o qual ainda não tinha tido contato até então.
Percebi o quanto eram extremamente profissionais e com um senso de responsabilidade acima da média. Talvez a frequência rotineira com a qual trabalhavam em sua atividade fim altamente especializada fosse uma das razões. Com isso, notei que a relação entre os militares de diferentes círculos hierárquicos se tornava menos rígida com a convivência. Havia um respeito mútuo, mas caminhando ao lado dele, estava sempre a missão.
Todos os integrantes das equipes dividiam o mesmo alojamento. Eles treinavam juntos, se preparavam juntos, planejavam juntos, viajavam juntos e atuavam juntos. Dividiam algo muito particular em comum: a conquista da caveira. Não era uma questão hierárquica, mas de irmandade.
Ao longo das semanas fomos recebendo instruções. Em uma delas, o Sargento iniciou com a parte teórica e logo após os Soldados assumiram toda parte prática. O resultado foi uma instrução conjunta de toda equipe deles. No final, estávamos separados em pequenos grupos tirando dúvidas, conhecendo o armamento deles, trocando informações e conversando. Até aí tudo bem, tranquilo, são o Comandos, o que mais poderíamos esperar?
Tudo normal. Até descobrimos que os Soldados que falavam sobre como se deslocar num corredor, como tomar um ângulo, como conduzir o armamento de forma mais eficiente, engajar um alvo em movimento, limpar um cômodo, etc etc etc, estava no seu segundo ano de tropa. Era um Soldado no seu primeiro ano de antigo. Era um moleque com nem dois anos de Exército! Ficamos todos impressionados com tamanha experiência e maturidade adquirida em tão pouco tempo.
E não parou por aí. Num outro dia, estávamos numa sala assistindo a uma competição de nado sincronizado. Um dos Soldados Comandos da instrução comentou:
— “Essas mulheres nadam muito, moço!“.
Ao que outro respondeu:
— “Pô, nadam mesmo, desenrolam muito na flutuação, devem treinar muito…”
Continuamos assistindo. Até que um deles completou.
— “É, mas quero ver ela nadar seis horas na água gelada toda assada e cheia de cãibras! Aí eu quero vamos se ela nada muito! Hahahahah“
Todos rimos. Eu um pouco menos. O que mais eu podia fazer? Elas nadavam muito, com toda certeza, mas talvez não tanto em condições extremas…
PRONTIDÃO, SINUCA E CHURRASCO!
Uma lição extremamente importante que não vi em dois anos de Escola, aprendi em um mês com a FT BAC. E ela se chama diversão!
Numas das reuniões que fazíamos para definir atividades e atualizar informações, em meio aos recados, um dos militares pediu a palavra para lembrar a todos da contribuição para uma competição que haveria naquela semana:
— “Vamos tentar fechar isso até amanhã para não ficarmos no sanha para comprar os prêmios, ok?!”, o mais antigo ressaltou.
E eu:
— “Hein, como é que é?!”
Em uma das salas do prédio tinha um grêmio. No grêmio, dois sofás velhos, uma televisão, uma sinuca capenga e um pingue-pongue mais ou menos. Eu e meu pelotão ficávamos de prontidão durante certo período. E, ao final dele, íamos para casa. Já eles, não podiam sair quase nunca. Apenas em dias sem jogos ou quando estivessem de folga, o que era raro. Logo, nos momentos sem atividades, era, ou torar o dia todo, ou nada, ou alguma atividade dispersiva, entre jogos, estudo, séries e filmes, ligações, etc.
Os campeonatos caíram como uma luva. Pingue-pongue e sinuca moendo, até o limite da imaginação, bastava ser aprovado pelo oficial responsável. E as competições eram acirradas! Dali rapidamente surgiam novos apelidos, as zoações aos mais antigos, a descontração geral. E todos participavam ativamente. Essa era a vida, o lar deles. Aquele ambiente me deixou muito motivado a querer fazer parte daquele grupo, era algo que eu não tinha visto até então.
Além dos campeonatos, eles também organizaram outras atividades. Uma delas foi um churrasco com direito a arroz, carne, maionese e farofa do rancho. Depois de um desenrolo estratégico, apareceram picanha e outras bebidas em comemoração ao dia dos pais. Na outra semana já rolou um rodízio de pizza. Aí, sério, parecia o paraíso das missões, aquilo era o Exército de verdade! Só faltou mesmo uma piscina (que existia!), mas tudo bem, não dá pra ganhar tudo.
* * * * *
Essas, entre outras coisas, tornaram a pequena experiência com os Comandos uma grande oportunidade para conhecer um lado até então bastante mistificado do nosso Exército. Oportunidade também de entender melhor como funciona de fato uma missão daquele nível, e de como somos uma instituição gigantesca e diversificada. A cada dia e a cada experiência e oportunidade, percebo o quanto o ditado que diz que no Exército tem lugar pra todo mundo é verdadeiro. Devagar e atento, vou descobrindo que lugar pode ser o meu.