Na última semana de novembro, num dia quase inalcançável, sargentos combatentes do Exército Brasileiro se formaram na Escola de Sargentos das Armas, em Três Corações-MG.
Para esses cerca de 700 novos sargentos, que conquistaram o tão esperado direito de sair pelos modestos portões da Escola, a formação finalmente chegou ao fim.
O interminável acabou. Assim, simplesmente.
Ao nosso lado na formatura, nossos irmãos, com os quais convivemos ao longo de muitos dias e noites durante o ano, também saíram conosco. A partir desse momento, na particular condição de aluno, ninguém mais voltará para EsSA.
Somos sargentos agora.
Não precisaremos mais caber com tudo que é nosso dentro de um armário de sete andares de altura. Nem conviver com antigas cracas que, felizmente, estão mais fortes agora, pois se misturaram com as novas cracas que trouxemos e deixamos. Não precisaremos mais viver correndo em forma o dia inteiro de atividade em atividade pelas instalações da EsSA. Nem vamos mais avançar ao rancho em forma entoando os trechos mais vibrantes das canções de nossas armas a cada refeição num insistente ritual diário que nos dava grande sensação de pertencimento.
Também não precisaremos mais dividir cada momento do dia — desde o abrir do olho ainda na escuridão da manhã até, talvez, voltar a fechá-lo depois do apagar das luzes a noite no mundo lá fora — com dezenas de marmanjos barulhentos, esquisitos e de tantos rincões do nosso Brasil, com os quais partilhamos inevitavelmente os melhores e os piores momentos recentes da nossa história de vida.
Não precisaremos mais provar que desenvolvemos os Atributos da Área Afetiva, uma das mais importantes missões da Escola, e que nos deixou mais resistentes, mais autoconfiantes, mais dedicados, mais abnegados, mais responsáveis, mais combativos, mais corajosos e, acima de tudo, mais perseverantes. Já fomos devidamente provados, e provamos.
O fim é a melhor e a pior parte da jornada
Assim como tudo na vida, em internato não é diferente. A intensa dualidade está presente todo o tempo: você gosta da vida militar, mas a odeia também, você fica triste por estar longe de casa, mas feliz pela mesma razão, sente um orgulho imenso por ser aluno, militar, praça, brasileiro, e um embaraço gigante na mesma proporção.
Sente muita raiva e morre de amores do mesmo tanto pela Escola. Quer que tudo acabe logo, mas se acabar sabe que nada volta nunca mais. Jura de pés juntos que quer ir embora logo. E nem um dia após a formatura, em qualquer tarefa banal, já lembra que “lá na EsSA a gente fazia isso e aquilo, os instrutores eram assim e assado…”, sentindo em silêncio a dor da saudade do que nem era bom.
Para piorar, ou melhorar, o ritmo do curso não afrouxa jamais. Ao contrário, a sensação é que ele é aumentado a cada nova etapa. Quando achamos que todos os campos tinham acabado, veio o Projeto Interdisciplinar (mais um campo). Quando achamos que este acabou, vieram palestras, orientações e outras fustigações (sinônimo de campo sem mochila). Aí começamos a preparação para o Manobrão: arrumação de material para mais um campo, mais aprestamentos, mais orientações, mais palestras, mais preparações e por fim os quase quinze dias de Manobra Escolar, longe da nossa Escola, e da qual sentimos saudade.
E quando achamos que “agora acabou!”, não. Ainda tem revista de uniforme para a formatura, entrega de material, campo das bolinhas, mais palestras, mais fustigações, mais orientações de fim de curso, mais formaturas, mais revistas de uniforme, mais orientações, mais palestras, mais treinamentos para a formatura, mais mijadas, mais mais mais… Não acaba nunca o gás daqueles instrutores.
Por fim, quando o tão esperado dia finalmente chega, você já entregou tudo que tinha e o que não tinha, e a única coisa que te mantém são é a vontade de ir embora logo daquele lugar. Daí, num instante, tudo acaba, todo aquele sentimento desaparece, agora você realmente vai embora.
Conquistamos o direito de sair pelos portões
A rotina se torna extremamente exaustiva porque a ‘fase tranquila’ esperada desde o início não chega jamais. O resultado é não suportarmos mais nem a nós mesmos. Nossa convivência se torna mais difícil. Um dos instrutores costumava dizer que os alunos eram uma panela de pressão prestes a explodir, e isso era uma coisa que definitivamente não deveria acontecer. Se o aluno já tem uma capacidade natural de fazer merda constantemente, imagina explodindo sob pressão?
Por isso, durante todo o ano duvidávamos do fim daquela vida miserável. Eu, sinceramente, nunca acreditei no fim. Para mim, quem chegaria lá seria alguém que não era eu. E parece que foi isso mesmo que aconteceu. Isso era angustiante e me fez pensar seriamente em não continuar algumas vezes.
Depois de muito me debater percebi que para sair ‘vivo’ dali eu deveria entregar o corpo e a alma para formação. Como costumamos dizer, “aceita que dói menos, combatente…” Eu aceitei, porém, nada ficou mais fácil, mas passei a agonizar menos com certeza. Honrei minha escolha e me responsabilizei pela decisão de continuar.
O desafio de formar os futuros Sargento das Armas é maior do que se possa imaginar. Mesmo depois de qualquer experiência militar ou de sair do Período Básico, não importa, a Escola vai te fazer experimentar os vários limites do seu corpo e da sua mente. Ela tem uma capacidade incrível de sugar toda sua vitalidade. De uma forma ou de outra, após ser cobrado e testado incansavelmente, querendo ou não, você será devidamente forjado.
Por isso, a EsSA também é conhecida como a Escola de Sofrimento das Almas. Um território espartano. Nela não há situações confortáveis, felpas, apartamentos, e aparentemente tudo — a cidade, o clima, o rancho, a cantina, os alojamentos, a intensidade das atividades, os recursos, o tratamento, a cobrança, o ambiente — é pensado para que os futuros sargentos experimentem diversas formas de dificuldades. Essa foi muitas vezes a impressão mais forte que tive.
Todas essas situações vão gerando uma espécie de modo ‘FODA-SE’ na sua cabeça. Caso não esteja atento o suficiente, isso pode acabar arruinando amizades e relacionamentos, como quase aconteceu comigo. E como aconteceu com alguns colegas que terminaram namoros e desgastaram fatalmente algumas amizades.
No final do curso, tudo o que se passou, as grandes dores, as pequenas glórias, o suor, o sangue, a saudade, a raiva, a angústia, o amor, a solidão inevitável, os companheiros inseparáveis, os desafios do dia a dia, seu armário, sua cama, sua mochila, suas poucas coisas, no fim, tudo isso acaba sendo digerido aos poucos. Nos curtos lapsos de lembranças, nas fotos que vão trazer as recordações das brincadeiras e das brigas junto a uma saudade dolorida e ingrata.
De fato, o candidato que entra pelos portões do Básico não é o mesmo que sai Lobinho dos portões da Qualificação. É algo que, apesar de ser inteiramente dividido com quem está do seu lado, é muito particular e íntimo. Escrever um texto, contar as histórias, mostrar algumas fotos, nada disso fará alguém entender o que se passa do lado de dentro. É preciso viver. Acontecem coisas demais. E a experiência marca muito profundamente o corpo, a mente e a alma de quem se lança ao desafio.
Para quem se formou este ano, digo: nós conseguimos.
Para quem sonha em entrar para a EsSA, digo que como tudo na vida você só vai saber como é aqui dentro quando pisar aqui.
Para quem vai para a Qualificação no próximo ano, sobretudo para a EsSA: se prepare, pois falta tudo. Você não tem a mínima noção do que isso quer dizer.
Para aqueles que já se formaram, não esqueçam que viemos da mesma Fábrica de Elos, e sempre se lembrem do que nós somos.
E lembrem-se todos: a vida está fora dos muros. Estude, treine, durma, se alimente bem, cuide de si e dos seus, tenha sempre um bom círculo de amizades do lado de fora. E seja sempre justo, bondoso e leal do lado de dentro.
Porém, para quem vai para o Curso de Infantaria da EsSA — o curso mais difícil das escolas de formação do Exército Brasileiro — digo:
Molon Labe! Ad Sumus! INFA!
O Sargento é tudo.