O início da vida militar é a melhor parte da jornada

                    E, finalmente, lá estava eu.

                    Mais um jovem sonhador e entusiasmado seguindo destino rumo a uma cidade desconhecida em outro estado. A mala — que parecia levar o corpo de outro jovem —  denunciava toda inexperiência e receio de quem a carregava.

                    Me despedindo da minha família, levava deles mais bagagem do que consigo mensurar. Dali para frente eu estaria por minha conta. Perceber isto — a responsabilidade total sobre minha própria pele, agora, sim, completamente nas minhas mãos — me dava uma sensação indescritível de liberdade.

                    Eu entraria para o Exército.

                    Experimentaria algo tão único que mudaria a maneira de olhar o mundo à minha volta. A saída de casa, as amizades da caserna, a realização de um sonho, a dura conquista da maturidade… e tudo mais que veio junto. O início de tudo é a parte que guardo com mais carinho.

                    Éramos eu e um amigo do cursinho. De alguma forma, me sentia responsável por ele, talvez por ser mais velho. Não importa. Era bom ter um canga para dividir a melhor parte da jornada.

                    — “Seremos sargentos do Exército, porra!”, falei na primeira curva saindo da rodoviária.

                    Não tinha mais volta. Eu, pelo menos, não voltaria. Ansioso por começar logo, nem dormi durante a viagem. Passamos o tempo conversando sobre o que faríamos quando chegássemos lá:

                    — “Vamos ocupar logo os armários para não ficar no sanha.”

                    — “Será que é bizu chegar cedo? Quantos já devem ter chegado?”

                    — “Será que vamos dormir hoje? Será que vamos dormir?”

Candidato chegando com suas malas bisuradas: “é sério isso, candidato?”



Leve todo seu conforto até o armário

                    Desembarcamos antes da parada final, o que nos economizou tempo, energia e dinheiro (recursos preciosos). Descemos num ponto em frente ao quartel, bem embaixo do sol. De onde estávamos até a entrada devia ter pouco mais de um quilômetro.

                    — “Já começamos bisurados!”, soltei, levantando meus cacarecos com a carcaça mirrada da época.

                    Poucos metros depois, não estávamos apenas molhados, mas inteiramente humilhados de suor. Dava para sentir o cheiro do nosso sanhaço lá da entrada. Porém, quando achamos que estávamos mais na merda, encontramos um cheiro mais forte que o nosso retornando do quartel:

                    — “Meus documentos, pô, esqueci…”, balbuciou ofegante a imagem do desespero passando por nós.

                    O infeliz carregava uma bolsa grande apoiada na cabeça, nos ombros e numa das mãos. Um peso considerável que seu pescoço distribuía para o resto do corpo, o impedindo de se desvirar. As costas pendiam para o lado da mão que levava outra bolsa, enquanto carregava outra mochila. Pelo cambalear daquelas pernas, ele certamente ficaria envergado para sempre.

                    Não era uma cena bonita. Levar conforto para um ano de internato era importante, mas a visão de tanta mala junta numa pessoa só me fez pensar se não tinha exagerado.

                    “Cada experiência é um tijolo a mais que colocamos na mochila”, um instrutor diria depois.

Nossa bagagem ainda estava leve, com o passar dos meses isso mudaria rapidamente.

                    Algo que só entenderíamos realmente quando a palavra dificuldade deixasse de significar a simples ideia de dor e passasse a significar a possibilidade de uma mente mais forte. Aí, talvez, neste dia — e se ele chegasse — teríamos conquistado, por nós mesmos, o direito de ser, de fato, aquilo que nos propomos.


“Não toquem o ‘F’ no alojamento, candidatos”

                    Muitos metros depois, finalmente chegamos.

                    Na entrada, ou melhor, no Portão das Armas, o mesmo Soldado que havia mandado o último bucha voltar, pediu:

                    — “Identidade, candidato”.

                    — “Sim, senhor”, respondi, sacando rapidamente a carteira. “Boa tarde”, completei.

                    O Soldado, que até então só queria saber do meu documento, passou a me olhar fixamente. Pegou o pedaço de papel plastificado e o analisou até devolver. Será que falei demais?

                    Carente ou não, aquela foi uma maneira de mostrar que eu sabia o que estava fazendo (e que não merecia voltar de jeito nenhum).

                    Entramos(!).

                    Cruzamos, ingenuamente, pela sagrada mesa do Comandante da Guarda — a mesma miserável na qual passaríamos boa parte de nossa vida militar (incríveis 10 anos) — e seguimos para o Pavilhão Escola, nossa futura casa.

                    Lá, um Sargento de serviço revistou nossas coisas e nos liberou após alguns avisos. Basicamente, ocupar nosso respectivo armário, não “tocar o foda-se” no alojamento (algo que eu realmente não pretendia fazer), cumprir os horários e estar sempre de cotonete: o mesmo que calça jeans e camisa branca. Sempre.

                    — “Repassem os avisos aos outros candidatos.”

                    Assim recebemos nossa primeira missão.

Parabéns pela foto, mas o lençol está alinhado igual a sua cara!

                    Ainda encharcados do sanhaço inicial, fingindo normalidade, subimos com nossas tralhas.

                    Ao entrar no alojamento, parei por um instante. Observei tudo, absorvendo cada detalhe — cada objeto, cada parede, piso, cheiro, cada coisa daquele lugar. Eu estava deslumbrado. E encarei cada pedaço como quem busca o próximo destino, só para olhar um pouco mais, querendo entender o porquê de cada coisa logo.

                    Primeiro objetivo estava concluído.


O chão é uma porcelana, mas o lençol é um sudário

                    O alojamento era grande, tomado por beliches. Um corredor central levava ao banheiro. As paredes laterais eram cercadas por armários dos quais cada um de nós teria direito a (impressionantes) duas portas.

                    O chão era tão bem lustrado que parecia porcelana. Dava para comer em cima dele. De corridas de colchão a competições de luta e rodas de baralho, entre conversas intermináveis, aprontos operacionais e um café colonial de respeito, aquele chão viu de tudo.

                    As camas estavam todas — TODAS, eu disse — precisamente alinhadas. Os lençóis, perfeitamente arrumados, seguindo o padrão de arrumação do dia: metade branca de lençol, metade verde de manta VO. Famosa manta Verde Oliva, pesada, dura e desconfortável, para o Aluno dormir.

                    Sim, havia uma padronização de arrumação para cada dia da semana. Num dia seria uma faixa vertical de manta VO; no outro, uma diagonal; no outro, um círculo em forma de flor (não me pergunte de quem foi essa ideia). Exceto de sexta a domingo, quando ficariam completamente forradas de manta VO para nosso alívio (ou não).

                    Meses depois a resposta o porquê: para evitar, ou pelo menos minimizar, que os Alunos de higiene duvidosa dormissem “no pelo” em cima do lençol branco, deixando um verdadeiro sudário nada santo na porcaria do lençol.


Uma cama, duas portas de armário e deu!




Tudo sempre começa e termina no alojamento

                    Pisos, beliches, colchões, paredes e armários, nada nas nossas instalações era novo. Eram peças antigas, já desgastadas pelo uso, mas particularmente bem cuidadas.

                    Agora seríamos nós os responsáveis. Alinhando, arrumando, esticando, lustrando e limpando. Também bagunçando, sujando e desorganizando, como não poderia deixar de ser. Para arrumar, limpar e organizar tudo de novo, quantas vezes fossem necessárias.

                    Na intenção de que aprendêssemos a preservar o que não era só nosso. Para que  guardássemos o que foi de quem havia passado por ali. E para que aqueles que ainda viriam pudessem usufruir.

                    Nos dias que antecediam os campos, aquele lugar limpo e bem organizado virava uma trincheira, com materiais e equipamentos espalhados por todos os lugares.

                    Era a ansiedade pelo que viria. Pelas noites sem fim e pelo amanheceres dolorosos e sofridos. Pelas marchas e orientações intermináveis, pelas instruções, oficinas e patrulhas, pela carcaça — agora menos mirrada, mas — o tempo todo surrada. Pelos pequenos novos tijolos que agora carregávamos.

                    Os temidos campos, desafios à parte, pelos quais deveríamos passar da maneira mais marcante possível. Para desenvolvermos os atributos inerentes ao Combatente Básico e criarmos a rusticidade necessária, característica inigualável do Soldado Brasileiro. Dando a base para prosseguirmos nas próximas empreitadas da carreira e da vida.

                    Ali era nosso lugar. Onde tudo acontecia. Lugar onde estávamos a salvo dos instrutores (ou pelo menos acreditávamos nisso). Com uma cama, duas portas de armário e uma mochila de campo, tínhamos tudo. Tínhamos um pouco de onde viemos — em fotos, cartas e presentes cuidadosamente guardados.

                    E até mais do que precisaríamos para viver/conviver/sobreviver com o mínimo necessário onde quer que fôssemos empregados no futuro. Era no alojamento que nos preparávamos para enfrentar o ambiente hostil lá fora.


O caminho tão longo até o Portão das Armas passou rápido

                    Certo dia, os instrutores estavam mais animosos que o normal. Um deles entrou no alojamento para nos ‘apressar’. Notamos, estranhamente, a ausência do Instrutor Chefe.

                    Naquele TFM, ficou claro que eles não estavam ali para ter pena de nós. E que, apesar da composição física particular e esquisita, eles eram fortes e resistentes.

                    Ficou evidente, a partir da septingentésima repetição ininterrupta de polichinelos — ou antes, na tricentésima execução de tesouras (mesmo colocando os braços no ‘gancho’ para ‘descansar’), que eu estava ali para ser tão forte quanto eles. Minha vontade de ficar foi reforçada.

                    Também foi no alojamento que tivemos inclusive uma guerra particular numa das últimas semanas de curso. Depois de uma revista inopinada do Oficial de Dia, um combate generalizado eclodiu. Era um saraivada de coisas voando, gritos escandalosos, entre portas de armário e beliches.

                    Terminando somente quando, por um ato deliberado de altruísmo, um coturno se jogou heroicamente numa lâmpada anunciando o cessar-fogo. Não sei como substituíram a lâmpada, mas no dia seguinte lá estava o alojamento impecável de novo.

                    São boas lembranças.

Só um tijolinho a mais…

                    E passar por aqui hoje — pela nem tão longa reta até o Portão das Armas, pela mesa do Comandante da Guarda, e por cada detalhe, cada lugar, cada pedaço, com uma quantidade inimaginável de tijolos na mochila, e ombros muito mais fortes que nunca para carregá-los — me faz reviver cada lembrança como se tivessem acontecido ontem.

                    Perceber o quanto as dificuldades do início tornaram a jornada mais especial me faz sentir privilegiado. Faz reacender o desejo daquele jovem sonhador que entrou pelos portões, convicto e encorajado a vencer o que se apresentasse, mesmo carregando o peso da inexperiência.

                    E me fez pensar também que era uma pena nem todos terem ficado para viver isso, lembrando do meu grande amigo que, infelizmente, não conseguiu ver esta parte do caminho.