Faça acontecer

Quando eu tinha uns seis anos, um filme épico de guerra foi lançado no cinema. Além de bem recebido pelo público, foi muito elogiado e um dos mais premiados daquele ano. O filme era ‘O Resgato do Soldado Ryan‘, de Steven Spielberg.

Resgate Soldado Ryan Cena ferimento tórax

A lembrança mais forte que tenho dele é a espera ansiosa por sua estreia na tevê aberta. Quando finalmente aconteceu, fiquei o dia inteiro esperando para ver como seria lutar numa guerra real. Ele seria transmitido lá para as onze da noite e naquela época ficar acordado até esse horário era equivalente a ficar uma semana sem dormir. Mas, lá estava eu, as nove, no sofá, com o olhar firme na tevê esperando o horário do filme começar. “Uai, vai dormir não, menino?”, minha mãe veio dizer. “Ainda não, vou ver um filme aqui…”. Ela mirou a tevê, olhou para mim já assimilando qual seria. “Vai ver esse filme não, meu filho, senão você não dorme nunca mais!” No fim das contas, lá estávamos nós esperando pelo início do filme.

Nos primeiros trinta minutos aparecem as cenas mais sangrentas, a invasão à praia de Omaha. Tiros, desespero, angústia, gritos, mais tiros, homens morrendo antes mesmo de chegar a praia, pedaços de gente, gente sem pedaços, ondas ensanguentadas, estampidos, explosões, areia, sangue e mais sangue. E eu lá, vidrado. Antes do final do filme, todos já tinham ido deitar. Ali tive a certeza, era aquilo mesmo que eu queria fazer, era o que minha cabeça fantasiosa de criança pensava. Obviamente, eu era o personagem que nunca morria.

Aquele filme e a decisão de assisti-lo, apesar do receio de ser bastante sanguinolento, reforçaram uma ideia que sempre povoou meu imaginário. Desde cedo, minhas brincadeiras estiveram relacionadas a guerrinhas, arminhas, bonequinhos de combate, lutas, atiradores, tiros e missões secretas nas quais eu invadia minha própria casa fazendo infiltrações pelos lugares mais inusitados, estudando rotas de fuga e explorando a surpresa, a rapidez e até a agressividade. Bons tempos…

Você é o que faz repetidamente

Desde as coisas aparentemente mais insignificantes — como brincadeiras de criança — até uma grande vontade — ser um soldado — pautam o que você será no futuro. As minhas me trouxeram ao lugar que hoje ocupo. E isso diz respeito minimamente a ser militar, sargento, infante. É sobre algo ainda mais complexo.

Aos dez anos, por exemplo, uma tia me disse que eu seria uma pessoa chata quando ficasse adulto. Putz… aquilo me machucou. Eu não era chato, eu era curioso, elétrico, conversado, uma criança agitada, só isso. Mas, eu estava sentenciado: minha chatice era incurável. Refleti bastante sobre até que ponto eu poderia mudar meu destino e no que eu precisaria trabalhar para mudar isso. Decidi não ser mais um chato. Não sei dizer se deu certo, mas aprendi a controlar um pouco mais minha própria carcacinha.

Aos catorze, tive experiências significativas com desenhos. Conheci um pouco sobre história da arte — talvez um conhecimento tão importante quanto ensino da própria história —, e a busca do ser humano em representar o entendimento sobre si mesmo. Conheci também pessoas incrivelmente inteligentes e críticas, verdadeiros líderes, que me inspiraram a buscar o melhor de mim, a entender meu lugar no mundo e a ver que era possível deixar minha marca nele também. Ali, tomei mais uma importante decisão. Este blog é um dos frutos dessas experiências.

Aos dezesseis, meu grande sonho de infância ainda estava vivo. Já tinha idade e pouco mais maturidade para entender que ser militar do Exército queria dizer sair de casa, abandonar boa parte da minha vida confortável, das coisas que eu mais gostava, da minha juventude tranquila, ficar longe dos parentes, amigos e da namorada. Uma decisão que me dividia. Passei por longos momentos de dúvida, reflexão e questionamento, medi os prós e os contras, perguntei a mim mesmo se era isso mesmo que eu queria e se estava disposto a assumir essas responsabilidades. Pensei muito, e aos dezessete, em meio à minha própria insegurança, decidi que iria sim ‘meter a cara’ naquele desafio.

Até o meio do meu ano de qualificação na ESA, eu ainda tinha dúvida se era aquilo mesmo que queria fazer. Era foda se manter motivado em meio ao cansaço que a formação naturalmente causa. Apesar disso, eu estava onde sempre quis estar, orgulhoso, dentro do possível, com minha escolha. É aí que está a diferença: havia uma dúvida sobre continuar, não um arrependimento de não ter feito, a pior situação possível. É exatamente esse o diferencial de encarar o desafio: estar lá apesar de toda dificuldade.

O clã se adensa…

No último mês, o curso de combate mais longo e difícil do Exército Brasileiro acabou: o Curso de Ações de Comandos. Dizem por aí que o CAC é uma luta constante contra si mesmo. Metade do seu ser quer ficar; a outra, quer sair. Tudo se resume à qual metade você alimenta, a qual delas você deixará vencer. Por isso, é preciso não deixar espaço para dúvidas.

Além de querer ser um soldado, de querer lutar nas guerras dos filmes que assisti, outra grande vontade minha desde criança era estar nas missões mais difíceis. Digamos, especiais. É incrível como as coisas são fáceis para uma criança, abandonar sua vida, sua juventude, sua família e amigos, para fazer coisas improváveis. Impressionante como nada disso parecia difícil quando eu era mais novo.  Como nada tinha o peso da maturidade que tem hoje.

Passei boa parte da minha juventude lendo, vendo, pesquisando, buscando tudo o que podia sobre soldados especiais e suas difíceis operações, não podia ver livros em prateleiras, fardas camufladas ou negras, filmes ou qualquer outra coisa do tipo que lá estava eu, observando e sonhando. Eu achava que poderia fazer tudo aquilo que via, pensava: ‘quer dizer que é fácil assim mesmo? só fazer isso?…‘ Enfim, minha vontade nunca passou.

Recentemente, tive a oportunidade de conversar com alguns operadores de forças especiais do Exército. É realmente impressionante como eles são diferenciados. Quer dizer, na verdade, eles são pessoas normais, falam, andam, correm, atiram, fazem rapel, se infiltram no território inimigo sem apoio direto e podem se manter operando por tempo indeterminado… nada de mais, né? O que os diferencia é a motivação.

MOTIVAÇÃO – MENTALIDADE – MATURIDADE

Pioneiros observam os verdadeiros Comandos em meio a outros alunos…

Mesmo sendo difícil a decisão de ‘dar o nome’, ela não é diferente das outras tantas decisões que tomei durante esse tempo, particularmente para mim. Ela nasce de uma vontade muito grande com a qual flerto constantemente. Até que se concretize, a vontade acima da possibilidade está sendo trabalhada, alimentada, preparada. No fim, faça acontecer.